Rádio

Com o desenvolvimento tecnológico, nasce o rádio. A partir do seu aparecimento, um novo ciclo de sociabilidades se forma. Do espaço público, o rádio já se estabelece como cen¬tro do espaço privado. Para ele, convergiam as conversas. Para ele, se elaboravam novas rotinas diárias. A sala de visita das pequenas famílias burguesas, local das conversas mais formais, transforma-se em espaço de entretenimento e informação. Por intermédio do rádio, a casa e a rua confluem. Da difusão de músicas clássicas, passando pela recitação da literatura às adaptações de romances estrangeiros, o rádio ganha rapidamen¬te popularidade. As novelas radiofónicas apresentam papel essencial nessa transição. Estas mobilizam as atenções, mas, especialmente, fomentam o imaginário, importando contex¬tos culturais muito distantes das classes populares.
O rádio, voltado para a dona de casa em geral, das recém-casadas às matriarcas, insuflava ventos de mu¬dança no espaço doméstico. Para as recém-casadas, as novidades dos electrodomésticos, coisa rara no quotidiano das donas de casa portuguesas, onde prevaleciam as práticas de cozinhar e limpeza desgastantes, a batedeira substitui a mão feminina calejada que revolvia a massa. O sabão em pó poupava à mulher o esforço de esfregar e torcer a roupa a fim de retirar a sujidade que impregnava os tecidos. Era um tipo único de li¬bertação. Sobrava tempo, portanto elevava-se a disposição para se deliciarem na escuta atenta das novelas radiofónicas.
Às jovens mulheres era dado, enfim, um espaço próprio, não de trabalho, mas de diversão. O rádio oferecia a oportunidade de demarcar um espaço e um tempo somente seu dentro dos seus inúmeros afazeres e encargos diários e emocionais. Para as ma¬triarcas, o rádio era percebido como objecto estranho. Uma inva¬são do seu espaço privado. Os anúncios das últimas novida¬des domésticas eram coisas de jovem; objectos curiosos, mas de pouca valia. O seu reconhecimento social dava-se por intermédio do trabalho doméstico tradicional apreendido de mãe para filha, à maneira antiga. No entanto, o rádio abria novas possibilidades para as velhas gerações, ainda que, na maior parte do tempo, os conteúdos lhes fossem estranhos. As no¬vas formas de sociabilidade atingiam todos, incorporando-se lentamente nas conversas nas calçadas das gerações anteriores, próprias de uma sociedade tradicional.
Os eventos retratados pelos noticiários e os progra¬mas de variedades incitavam reflexões sobre a condição femini¬na. As notícias da guerra mostravam um mundo em destruição e a chegada lenta de um outro ainda em estádio embrionário. Os noticiários eram, agora, comentados no momento da sua difusão.
Nos cafés, nas praças, nas ruas, não se passava sem que se comentasse o acontecimento do momento. Os programas de va¬riedades abriam as portas de um universo antes desconhecido. Havia tantas e tão inusitadas novidades de consumo que esti¬mulavam a imaginação e o desejo de posse. Mas os programas de variedade não actuavam apenas nessa vertente; o essencial, e talvez o mais importante, era a nova sociabilidade a que dava origem. A possibilidade de entrar em sorteios, de fazer parte dos gracejos do apresentador criava novos laços de visibilidade social. Era um novo estatuto que surgia por intermédio deste novo meio de comunicação.
Esse mundo ganha amplitude com o uso simultâneo das ondas curtas e médias, a invenção do transístor e a chegada da televi¬são. As duas faixas de frequência dividem as gerações em apro¬priações diferenciadas do aparelho. A invenção do transístor possibilita o aparecimento do rádio portátil, criando novos espaços, para novas interacções. Em paralelo, a chegada da televisão carrega consigo mudanças importantes nas relações do rádio com os seus utilizadores. Quem conseguisse entrar no cir¬cuito mediático do rádio criava uma aura de diferenciação social. Era um novo estatuto que surgia por intermédio da mobilidade do aparelho, que tira o rádio da sala e o transporta para outros cómodos. Acompanhando a escuta flexível, os sujeitos sociais criam outros laços de interacção. O rádio na cozinha agora atenua o trabalho doméstico; na varanda, ele acompanha o momento de descanso; na sala é, para os jovens bailar ao som do rádio nas tardes de domingo; no quarto é reflexo de intimidade. Da casa, a mobilidade estende-se para o espaço público. Na construção civil, está no balouçar dos andaimes; no campo, embala os sons do trabalho; nos bares, movimenta o lazer dos jovens; nas ruas, acompanha a velocidade vertiginosa dos carros; nas estra¬das é companhia para os solitários motoristas; nas sombras da noite, é alerta para os vigias nocturnos e companhia para as men¬tes que sofrem de insónia e para os corações solitários.
Perdendo centralidade no espaço doméstico pela televisão, o rádio dá uma reviravolta e torna-se, pelo seu uso, ele¬mento importante no espaço público. Semelhante às grafonolas das quais é herdeiro, o rádio ganha espaço em todos os locais, até ao tablier dos carros, chegando às malas dos mesmos. Acoplado a caixas de som potentes, nos pontos de encontro da juventude, o rádio adquire a função de formação de ambiente para a degustação da cerveja nas ruas, para a diversão nos bancos de jardim, para a confraternização com os amigos. Agora, o rádio não tem a função de difundir produtos milagrosos, como antes, pois ele é o próprio objecto de consumo e mediador de um novo status social.
No imaginário juvenil, a maior potência do rádio está vincu¬lada à sexualidade e ao seu poder de sedução. Para quem possui o equipamento proporciona aumento da capacidade de masculinidade com o objecto da diversão como também possibilita maior inser¬ção no jogo das relações sociais, desta vez de forma impositiva.
Posted on 11:39 by #PC# and filed under | 0 Comments »

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